segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Crônica de uma morte anônima.

Um passeio vespertino. Duas da tarde e um calor sufocante de 38ºC. A caminhada começa em uma pequena viela deserta; uma sequência de terrenos baldios com seus verdes e fartos cultivos de ervas daninhas. Algumas quadras adiante o início de um sequência de mansoes e casaroes comerciais, ilustrando as quase irreais diferenças sociais dessa cidade; me pergunto quantas pessoas moram em cada um desses palácios, duas? três? E quantas pessoas vivem –sobrevivem- em cada uma das pequenas casas –barracos- da margem paupérrima do rio, oito? nove?
No caminho em direçao ao rio, alguns trabalhadores uniformizados cortam a grama e me dou conta de que desse pequeno ato nasce uma das melhores –e proporcionalmente inexplicáveis- sensaçoes que tornam a nossa vida besta algo singularmente prazeroso: Quem nunca foi invadido por uma onda de felicidade, por um êxtase carregado de nostalgia, para mim, ao sentir o delicioso cheiro da grama recém cortada, que atire a primeira pedra. Acho que esta sensaçao só se iguala ao inalar-se o cheiro de terra molhada, principalmente depois de uma dessas chuvas torrenciais as quais estamos tao habituados, ou ao cheiro do café da tarde recém coado pela sua avó e servido com, tao recéns quanto, bolinhos de chuva salpicados de açucar e canela.
À margem do lago os bancos que antes recebiam os casais apaixonados, agora sao a materializaçao do descaso patrimonial e os únicos casais que por ali passam sao os de pombos que tingem os apodrecidos asentos com seus fétidos dejetos ou ainda os casais que durante a noite sentam-se na companhia inseparavel de suas latas de aluminio e de suas poedras de crack. Um pouco além, em meio à grama alta, os coloridos brinquedos –gangorras, balanços, escorregadores- também sofrem a açao implacável do tempo e já nao mais sao o passatempo dos infantes dessa terra, agora ocupados com a limpeza de parabrisas nos movimentados cruzamentos da regiao do centro. Entre um carro e outro alguns grupos de pequenos trabalhadores se reveza no que, penso, é a única diversao de seus dias: mergulham nas águas barrentas do lago numa tentativa alucinada de pôr fim ao atordoante calor da tarde. Nadam próximos à ponte que atravessa o lago, despreocupados por instantes, voltando às suas origens, vivem a liberdade de seus onze, doze ou treze anos, despreocupados pela exposiçao de suas flácidas masculinidades –kurupis- e despreocupados com as questoes de pudor que tanto preocupam a nossa sociedade hipócrita e infestada de falsos moralistas.
Andando à margem direita do lago, os prédios ficam cada vez menores, o ruído do trânsito caótico já é quase imperceptível e se nao fosse pela simpática ancià com sua carregada cesta de chipas na cabeça, acreditaria estar em outro lugar, entre o paralelo e o irreal.
Sentado embaixo de uma árvore gigantesca e imponente, aproveito o leve frescor trazido pela brisa vinda do bosque. Embalado pelos tranquilos acordes de All you need is love, embarco em um momento pensar a vida. Um inspirador céu azul, com algumas poucas nuvens brancas que se desmancham com o vento, me faz refletir sobre como sou feliz com minhas pequenas conquistas diárias, sobre como sou triste com minhas decepçoes recorrentes e sobre como transitar entre esses dois estados de ânimo é normal e necessário.
Perdido nesses devaneios e alucinaçoes me dou conta de que já nao mais vejo o céu azul. Ao meu redor somente o chocolate da água barrenta. Agora quem está mergulhado entre as algas e outras plantas aquáticas já nao sao os diminutos guaranís. Dizer que a vida passa como um filme diante dos seus olhos na hora da sua morte é uma besteira: a única coisa que vejo passar enquanto afundo é uma garrafa peti de Pulp Pomelo, o único que sinto é o cheiro da água impura e o gosto de barro, e o único que ouço na solidao desse momento sao as músicas que ainda saem dos fones. Sinto-me tentado a lutar, mas a racionalidade impera sobre meus instintos, de que adiantaria tentar manter-me vivo se, nao sabendo nadar e estando num lugar desprovido de transeuntes, meu único, trágico e anônimo, destino é a morte?

Ainda distinguo as vozes que cada vez mais se distanciam: let it be, let it be, let it.

[CDE. 24/10/09]

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O Torcedor -monólogo desesperado em um ato-

Personagem:

-TORCEDOR: Jovem, com barba (bem cuidada), cabelo igualmente bem cuidado –indiferente se curto ou longo-, jeans e camiseta da seleçao brasileira.



[De joelho em frente a uma imagem de Nossa Senhora. Reza.]



Minha Nossa Senhora, é um grande jogo, a grande final, e eu vim aqui pedir pra senhora colocar as suas maos nas chuteiras daqueles benditos atacantes. Aliás, nao sei se colocar a mao nas chuteiras dos atacantes ou nas luvas do goleiro.

[Pausa. Pensa.]

Bom, coloca uma mao nos pés do atacante e uma mao nas luvas do goleiro, afinal, prevenir... prevenir é melhor que remediar. Mas já que a senhora só estará com as maos ocupadas, aproveita e passa uma rasteira no atacante da frança, só pra garantir... só pra garantir! Se o nosso time jogar bem, ótimo, mas se o time deles jogar mal, melhor! Porque, acima de tudo, também facilitará o seu trabalho, né, maezinha. Sei que é feio pedir a desgraça alheia, mas, ah!, a senhora tem que entender, é final, é A FINAL, a graaaande final.
Só dá pra contar com a senhora, de fato, porque a nossa seleçao vai de mal a pior: é cirurgia pra cá, escândalos sexuais pra lá, explosao da balança acolá. Isso sem falar no técnico! Ok, ok, ele trouxe o time até a final... mas já tá na hora d pendurar as chuteiras, a senhora nao acha? [Espera, como se ela realmente fosse responder] Sabia que a Senhora ia me dar razao. Modéstia a parte, eu sei tudo sobre futebol, poderia ser eu no lugar desse aí, comandando a nossa seleçao – entendo tudo de passe, estratégias de ataque e tudo o mais que a senhora imaginar. Juro pra Senhora: comigo esse time nao perderia uma! Aliás, esse time? Nem seria esse time, caríssima. Eu cortaria logo uns cinco desses pernas de pau que tao aí. falo pra Senhora que meu irmao manco corre melhor que eles. PUTA QUE PARIU!

[Silêncio. Expressao de culpa]

Desculpe... sei que, na sua santa presença, usar essa linguagem é até uma blasfemia, mas, ah!, futebol pra mim é coisa séria! Vou dizer: daria cada fio da minha barba por essa vitória! Dria um olho, um pulmao, um rim – afinal, pra que dois?! [Meia risada - pensativo] E sabe do que mais, Nossa Senhora?! Eu prometo que vou doar um rim se se a gente ganhar! É! [com cara de orgulhoso, como se tivesse fazendo a melhor coisa do mundo – começa a se afastar da Santa, como que saindo de cena – volta em um impulso.] Pensando bem, rim é uma coisa que nunca se sabe até quando vai funcionar. O pai do vizinho de um amigo meu doou um rim pro cunhado e, um ano depois, o rim que sobrou começou a pifar e ele processou o cunhado pra conseguir o rim de volta. Mas também... cunhado? Logo pro cunhado? Eu deixaria morrer, acho. [Senta no chao, pensativo. Ajoelha de novo] O rim nao, tá decidido! Porque... a Senhora entende, né?! Eu posso realmente precisar dele a qualquer momento, nunca se sabe... nunca se sabe! [Silêncio] Doo metade do fígado – é isso! Porque, a Senhora deve saber, o fígado cresce de novo, dizem, e aí nao tem problema. Bom, assim será: a vitória por meio fígado! [Dois passos em direçao à saída, para. Meia volta.] Ultimamente... eu tenho bebido muito e... acho que preciso do fígado inteiro pra dar conta da comemoraçao do título! Ah! A Senhora sabe, a Senhora sabe! [Senta-se. Pensa.] O cabelo! Claro, o cabelo! Nao que eu queira oferecer à Senhora o que tem menos valor, mas... o cabelo cresce de logo e, além disso, tô oferecendo de coraçao e acho que isso conta, nao conta?! [Pausa] É isso, vai ser o cabelo! [Sai]

[Um instante fora de cena. Volta]

Ai... o meu cabelo faz tanto sucesso... ele faz parte da minha imagem de sucesso, sabe?! Se eu chego careca pra trabalhar na segunda, vai ser a piada da semana, eu nao vou aguentar, eu nao vou aguentar. Além disso, meu cabelo faz muito sucesso com as mulheres, elas adroram passar a mao enquanto estamos no trânsito [fala sempre passando a mao no cabelo, com ar de prazer – porta-se como se fosse um grande sedutor], adoram passar a mao nele durante o banho, fazendo escorrer a espuma do shampú por entre os dedos da mao. A Carlinha gostava, inclusive, que eu passasse o cabelo nos pés dela na hora das preliminares, coisa que eu nunca entendi, de fato. Mas a questao é: a senhora tem que entender que meu cabelo é importante demais pra mim. A Senhora entende, né?! [O silêncio de quem aguarda a resposta] Sabia! A senhora sempre foi muito compreensiva comigo. Bom, acredito na Senhora, vou rezar pela vitória e, como a Senhora sempre foi muito boa pra mim, vai me dar essa vitória de presente, nao é mesmo?! [Faz o sinal da cruz e sai.]



[Apagam-se as luzes por um instante. Ilumina-se em um extremo até entao escuro um pequeno rádio – começa a narraçao dos últimos momentos do jogo Brasil X França. Corta e pula direto pro anuncio da vitória da frança. Silêncio.]

[Apagam-se as luzes novamente indicando o fim do ato.]

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

¡Vivamos la utopía!

Vivemos em um mundo onde todos tentam ostentar uma excelência intelectual, os melhores padroes educacionais, os melhores índices de desenvolvimento econômico e tecnológico, o melhor isso e o melhor aquilo, mas se paramos para uma breve olhada no ambiente a nossa volta, percebemos que a realidade nao é exatamente assim, e sim isso pode ser um grande lugar comum, mas um lugar comum ainda muito latente em nossa sociedade.
Índios e negros foram usados no inicio dos processos de conquista e de “civilizacao” como mao de obra e como moeda, estiveram submetidos a todo tipo de humilhacao e a todo tipo de atividades em condiçoes sub humanas, porque nem ao menos eram humanos; animais sem alma e adoradores de demônios em rituais profanos. Por que dizer estas coisas tao batidas e de conhecimento comum? –Só para garantir que isso estaria fresco na sua memória enquanto você lesse o restante do texto.
Recém, aliás, agora a pouco, vi uma reportagem de um noticiário argentino que tratava justamente da questao do preconceito com turista de origem afro e indígena. O repórter conduzia o recolhimento de filmagens com câmeras escondidas, indo até hoteis com quartos disponiveis, consultados previamente via telefone; um ator negro, interpretando um turista, vai até esses hoteis e recebe uma sequência de negativas com relaçao à disponibilidade de quartos; nos mesmos hoteis, minutos depois, um ator branco procede da mesma forma, porém com uma receptiva totalmente diferente em todos os estabelecimentos: incrivelmente, em menos de 15 minutos, vagaram quartos em todos eles. Coincidência?
Situado, ilustrado e devidamente problematizado, passemos ao ato propriamente dito. Qual o interesse do público a quem esse texto é endereçado? Primeiramente escrevo para seres humanos dotados, imagino, de consciência do que acontece a sua volta, pessoas que lidam com pessoas diariamente, profissionalmente, academicamente, socialmente. Conto: Quando embarquei nessa oportunidade de intercâmbio no Paraguai, tinha outros objetivos maiores que o acadêmico, porque nesse ponto estou muito melhor servido em minha universidade de origem; no aspecto profissional, talvez, porque com certeza uma experiêcia no exterior enriquece o currículo de qualquer um; o meu objetivo maior estava na dificuldades e superaçoes que isso me traria no nivel pessoal. No final do ano de 2008 tive a oportunidade de apresentar um trabalho acadêmico na Universidad Nacional del Nordeste (UNNE), na Argentina, e, aproveitando a proximidade, pude visitar a uma amiga que participava do mesmo programa de intercâmbio no Paraguai e estivemos aí em Assunçao por alguns dias aproveitando o calor que fazia no final do segundo semestre.
Pois bem, quando chegamos da Argentina fomos até a casa onde ela alugava um quarto, afim de descansar da viagem e deixar a pesada bagagem. Nenhum problema inicialmente. Inicialmente. Me recostei na cama e cochilei. Acordei tempos depois com a minha amiga em prantos: a senhora de quem alugava o quarto disse que nao me queria na casa dela por ser negro e que, por sê-lo, iria roubar a casa dela e uma série de outras barbaridades das quais prefiro poupá-los. Saimos da casa e, felizmente, na mesma proporçao em que existem pessoas medíocres, existem pessoas ótimas, com as quais pude/pudemos contar.
Qual o objetivo entao de ir mais uma vez para este país onde tive essa experiência tao problemática e traumatizante? Simples: superaçao. Penso que apesar de todo tipo de coisa que viesse a acontecer por consequència da minha escolha, estava/estou disposto a correr o risco. Disposto a correr os riscos de viver em um país tradicionalista, em uma cultura, justificando-se por isso, racista, machista e homofóbica; estou disposto a tirar o melhor dessa experiência e aproveitar ao máximo os momentos com as pessoas que tem visoes coerentes sobre o mundo. Estou cansado de ligar a televisao e todo o tempo me deparar com noticias de violência por parte de grupos neonazistas e de outros tantos grupos que cultuam a intolerância como maior, senao único, objetivo de vida.

Quero olhar para o lado e me deparar somente com pessoas que tenham o mínimo de esclarecimento e de consciência de que a tolerância é o caminho.

Vivamos a utopia!

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Voa e vai pra onde o vento for.

Vento leva, chuva lava, morte livra

e das amarras liberta.