quarta-feira, 23 de março de 2011

Desvivida. [1]

De feto, nada se lembra. Fantasia.
Sua primeira lembrança consciente data de quando tinha lá seus quatro anos - recém completados. No surrado sofá da sala, sente os primeiros movimentos na barriga de sua mãe. Não entende, de fato, o que significa a gravidez, o aumento da família, o ter um irmão. O único que sabia era o que via e o que, a partir disso, imaginava. Via o crescimento diário da barriga da mãe; via a felicidade coletiva que se espalhava a cada movimento daquele ser que nem viera ainda a este mundo; via brilhar cada vez mais os negros e profundos olhos da mãe.
Tardes inteiras de uma infância bem vivida: não se apegava à TV, aos programas infantis apresentados por estúpidos bonecos de pelúcia. Gostava de correr pelo quintal e brincar com seu cachorro. Montava-o como se fosse um cavalo. O bom e velho Branco não se importava com as travessuras do menino – ou talvez se importasse, mas não tinha força suficiente para resistir ou, ainda, suportava as estripulias na esperança de um afago e no dividir a cama com o dono durante a noite. Gostava ainda, o menino, do velho balanço. Passava horas na incansável distração de se balançar e ver os ramos das árvores se aproximarem e se afastarem, numa tediosa constante que - a ele - não cansava. Quando o balanço parava, se mantinha ainda sentado e observava as poucas nuvens que passavam no céu azul. Ficava imaginando objetos, rostos e toda classe de outras coisas corriqueiras que podiam se formar pelo lento movimento das massas brancas e disformes.
Acordou um dia com o cheiro de café que vinha da cozinha, feito por sua avó – sua mãe nunca fazia café – e acompanhado sempre por deliciosos biscoitos caseiros que sempre trazia para brindar o guloso neto. Estranha o silêncio da casa, mas não dá muita atenção, de qualquer forma. Passou o dia no seu vai e vem rotineiro pelo quintal. Entre o subir numa árvore e o atirar pedras no poço, um suco com bolachas servido pela devotada anciã.
Na manhã do dia seguinte, o cheiro de café novamente infesta todos os cômodos. No ambiente, o sentimento emanado não é a felicidade. As cortinas da casa ainda não foram abertas e a penumbra toma conta da sala, apesar do sol absurdo que faz lá fora. No rosto da avó e do pai, olheiras que denotavam uma noite mal dormida. No quarto, o leve choro do recém nascido, envolto em sua manta branca. No mesmo quarto, não encontra a mãe. Estranhamente, as roupas dela estavam todas em cima da cama. Os dias se passam e ela não aparece. Volta a brinca no velho balanço de corda. Olhava agora para as nuvens e tinha um rosto mais para procurar na abstração das nuvens.

[13.03.11]