Sempre achou que a vida era cinza e amarga aos seus olhos.
Nasceu numa linda manhã de sol, de um sábado 14. Como em toda boa sexta feira 13, muitas coisas deram errado na vida dos seus pais nas horas que antecederam a sua chegada, mas não acreditava nessas crendices. Teve uma infância dentro dos tediosos padrões esperáveis, desejáveis e aceitáveis: vivia numa rua tranqüila, na sua confortável casa de classe média, tinha um cachorro, um quarto só pra ele e, por ser filho único, todas as suas vontades feitas por seus pais. Não tinha muitos amigos, verdade, mas não ligava muito pra isso, achava-se tão auto-suficiente que nunca teve vontade de correr com sua bicicleta enferrujada junto com os outros meninos da sua rua, que tinham quase a mesma idade; nunca quis ficar com as unhas cheias de terra depois de uma tarde jogando bolinha de gude; nunca quis explorar os terrenos vazios que ficavam entre a sua casa e o pequeno riacho, como faziam os outros nos dias de temperatura mais amena; nunca quis saltar do alto da figueira em direção ao rio e espirrar água em todos que ficavam à margem – gostava de sentar-se só, sempre, no grande pedregulho que dava um bom panorama daquele lugar todo, até onde os olhos alcançam. Cresceu assim.
No colegial gostava de algumas aulas e de outras não, claro. Gostava das aulas de matemática, química e física – odiava as práticas de educação física, achava desnecessária e insuportável a idéia de suar, depois de intermináveis 50 minutos correndo de um lado para o outro, e ficar fedendo o resto do período, até chegar a hora de retornar a casa, cabulava essas aulas e sentava-se no alto do muro do colégio para ficar olhando o horizonte: como estudava pela manhã, gostava de ver o despontar dos primeiros raios do amanhecer; gostava também dos dias de neblina, onde não se podia ver nada, além do opaco brilho dos faróis dos carros que passavam vez ou outra. Era inconstante.
Entrou no ensino médio sem nunca ter repousado os seus lábios sobre os de outra pessoa. Uma vez quase beijara uma menina da sua turma, num dos enfadonhos jogos juvenis que todos faziam, mas no exato momento do quase lamentável beijo, o sinal tocou e todos correram, pois era a última aula. Teria gostado? Nunca saberia...
Nunca se interessava por ninguém até o final do segundo ano, quando um menino novo mudou-se para a cidade e entrou na mesma turma que ele. As coisas mudaram um pouco. Sentiu calafrios quando ele entrou. Tinha uma aparência um tanto sombria, parecia-se muito com ele próprio, às vezes, mas achou que não passava de uma primeira impressão. Sentou-se no fundo, na cadeira vaga ao seu lado, na qual ninguém nunca queria sentar. Tornaram-se parceiros de laboratório. Começaram a estudar juntos para os exames. Aprenderam mais do que os conteúdos escolares. Já não se sentava sozinho na grande pedra. Já não andava sozinho de bicicleta. Já não passava frio nas noites de inverno. No início seus pais não questionaram sobre a repentina amizade e nem pelo grau de aproximação dos dois; sempre o incentivaram a ter amigos da sua idade e a fazer coisas “normais”. Perderam um pouco a noção dos limites.
Um dia sua mãe entrou no quarto e o amigo não estava deitado no chão, no colchão de hóspedes, mas sim na apertada cama de solteiro, que não parecia grande o suficiente para duas pessoas normais, mas que era perfeita para o tamanho dos corpos esguios que ali repousavam. Hesitou e achou melhor não causar nenhum alarde pela primeira impressão, podia estar errada, precipitada. Saiu para trabalhar e deixou um bilhete dizendo que queria conversar com o filho quando voltasse. Ele não pareceu alarmado com isso, visto que sempre conversavam, mesmo que fosse sobre o tempo. À noite estava sentado frente à TV, desligada, desligado. Sua mãe sentou-se e questionou sobre a proximidade do colega e se ele sabia que o mesmo poderia ter segundas intenções com ele, inocente. Mal sabia ela. Discutiram. No fim, muitas portas foram batidas e muitas lágrimas foram derramadas. No dia seguinte, na escola, encontraram-se e contou a ele tudo o que tinha acontecido. Reconfortou-lhe.
Passaram a viver como o cão. Encontravam-se às escondidas. Faziam o que podiam onde não deviam. Um dia foram pegos no vestiário do colégio pelos outros meninos da turma, numa típica cena de cinema, quando cabulavam a aula prática para mais um furtivo encontro. O desfecho, como não podia deixar de ser, foi trágico. Nunca chorara tanto na sua vida. Nunca sofrera tanto com a dor de outra pessoa. Passou a semana toda ao lado do leito. Não comia. Sua mãe tentou dissuadi-lo de ficar ali, mas seus esforços foram inúteis. Finalmente deixou-se levar. Não sabia o que tinha sido mais longo, a espera pela melhora que nunca aconteceu ou a ida à despedida que nunca queria que terminasse.
Postou-se ao lado do caixão e dali não saiu em nenhum momento. Antes de baixarem a tampa, repousou os seus naqueles lábios cinzentos e frios, como nunca fizera antes. Sentiu-se amaldiçoar, maldisse o seu beijo mortal e jurou pela sua vida que nunca mais tocaria outros lábios. E não o fez.
Já não saia de casa, do quarto. Padeceu ali, solitário como começou.
Beijou-se no espelho, um dia. O beijo de adeus.
12 comentários:
gente! que forte.
maravilhoso!
Thanks, Mei! =)
Júlio
Estou chocada. Muito forte e tocante! Parabéns!
"...gostava também dos dias de neblina, onde não se podia ver nada, além do opaco brilho dos faróis dos carros que passavam vez ou outra. Era inconstante."
Que sensação de déjà vu...
Lindo, Julio.
Hunf...não gosto de finais tristes =/
muito lindo!
Que triste!!!
Mas muito bonito! =)
Lindos os textos!
Magnífico conto!!! Parabéns meu amigo!!
Muito bom! Deu um nozinho na garganta aqui... Parabéns!
gostei bastante :), belo texto ju
Julius Cesaris,
eu amei!
muito tocante! - muito bem escrito, muito bem sintonizado com meu traço de humanidade!
Tão intenso quanto belo!
=)
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